quinta-feira, 7 de junho de 2018


“Sentir-se bem”

Observo que “sentir-se bem” tem sido a busca primordial dos seres vivos. Nós, “humanos”, associamos “sentir-se bem” aos “prazeres”, sobretudo nos dois últimos séculos. Não haveria problemas nesta relação se não houvesse a formatação dos “prazeres”... Ou seja, a busca primordial das nossas vidas vem sendo delineada por “outros(as)” na mesma proporção em que nos abandonamos.
Deste ponto de vista posso afirmar que os principais “prazeres” identificados nas sociedades “modernas” são:
Comer (Principalmente gorduras, açúcares e massas)
Fazer sexo (Com preferência para corpos estereotipados ou padronizados)
Comprar (Há quem prefira esse último aos demais)
Se entorpecer (Em consequência ou paralelamente à busca frustrada dos demais “prazeres”)
Todos esses “prazeres” estão diretamente relacionados aos corpos (obviamente), pois é somente por meio desses que experimentamos os “prazeres” e as “dores”. Por falar em “dores”, essas também vêm sendo formatadas... Mas, retomemos o foco: “Sentir-se bem”.
Se essa é a busca primordial dos seres vivos, podemos dizer que temos entraves. Não vejo a sociedade que vivo como vitoriosa... Nós, “humanos”, dificultamos essa busca para todos.
Para obter os “prazeres” elencados temos empreendido todo o nosso tempo, todos eles passam por processos de mercantilização, sendo assim, exigem recursos, sobretudo financeiros. Dentro da lógica imposta, se não temos dinheiro não temos “prazeres” e, fatalmente, não temos como nos “sentir bem”. É exatamente nesse ponto que iniciam-se os processos de abandono.
Para comer o que nos ordenam, para fazer sexo da forma como nos ensinaram, para comprar coisas que nos são apresentadas como imprescindíveis... A nós, pobres, só restam as possibilidades do trabalho ou do crime (que, também, implica em trabalho).
Dessa forma, trabalhamos absurdamente, incessantemente e, ainda assim, não nos “sentimos bem”... O grau de frustração, que leva à busca do entorpecimento, é infinitamente maior que o da satisfação, para a maioria esmagadora da população. Esses “prazeres formatados” tornam-se, também, “prazeres saturados”... Quanto mais obtemos, menos nos satisfazemos... A capacidade de “sentir prazer” é danificada pela quantidade exigida e, essa “quantidade”, dentro de uma lógica de mercantilização é infinita, afinal “o mercado precisa ser aquecido”.
Quando criança tinha adoração por doces. Até certa idade tive quantos doces quisesse por dia... Meu pai comprava. Depois houve uma grande fase de dificuldades financeiras, meu pai adoeceu... Ele trabalhava demais... E os doces ficaram inacessíveis. Eu inventava, criava, fazia misturas loucas do tipo farinha de mandioca, açúcar e leite. “Leite Moça” era o meu sonho de consumo... Quando rolava uma lata, era cozida e escondida após a primeira distribuição.
O fato é que depois que cresci e comecei a trabalhar, engordei uns vinte quilos nos primeiros cinco anos, pois o “prazer” de comer doces foi totalmente absorvido. Mas, a minha capacidade de senti-lo foi danificada e com o passar do tempo o “Leite Moça” estocado no armário foi sendo descartado. Eu precisava de mais...
Fazer sexo é algo totalmente “normatizado” em nossa sociedade, nos ensinam desde cedo o que pode e o que não pode. O que “não pode” torna-se alvo, mesmo que coberto pelo “moralismo” e pela hipocrisia.
Assim como o “prazer” de comer, o “prazer” sexual também é afetado pela oferta. Aquele corpo ao seu lado, quando lhe é garantido, passa a não lhe despertar tanto interesse, mesmo que esse corpo seja o “padrão do que deve ser desejado”. Ansiamos por mais...
Quando os dois “prazeres” dominantes falham, o terceiro vem com força: Comprar! Comprar! Comprar! Não importa o que, não importa o preço... Pagamos a juros altíssimos tudo que “desejamos” comprar. Com o passar do tempo as compras ficam mais sofisticadas e exigem mais trabalho, mais abandono e dedicação para aquisição de coisas que não “preencherão nossos espaços vazios”.
O que nos resta é o entorpecimento que, contraditoriamente à busca primordial, implica em “deixar de sentir” ou “sentir artificialmente”. Os entorpecentes não são apenas drogas, são telas, jogos, celulares, fama, bajulações... Tudo que se pode pagar com o suado dinheiro “ganhado”.
Nem sequer descansamos... Após as infinitas horas dedicadas ao trabalho, nos obrigamos ao “sentir-se bem”, como uma forma de gratificação, bonificação... Precisamos produzir, assistir, ganhar... A qualquer preço.
Nossa busca primordial parece ser inútil a essa altura do texto... Mas, atentem... Nossa busca não são os “prazeres” e sim o “sentir-se bem”. Percebam que quando encontramos pessoas queridas ou não, perguntamos: “Está bem?” E obrigatoriamente todos dizem: “Sim! E você?”.
O verbo transitivo direto é “sentir” e ironicamente caminhamos para os mais altos níveis de insensibilidades. Quando conjugado “sentir-se” é muito mais difícil, pois passamos a vida inteira dedicando nosso tempo às coisas externas, alheias... Não nos conhecemos, não olhamos para dentro de nós mesmo, muito menos para dentro dos(as) outros(as)... Como poderíamos “nos sentir”?
A falta de tempo para nos observarmos inviabiliza o olhar para dentro e, consequentemente, não refletimos sobre o que verdadeiramente nos faz “sentir-se bem”... A alimentação, por necessidade fisiológica, é colocada em segundo plano. Não comemos e, está cada vez mais difícil conseguirmos, alimentos que nos proporcionam energia e saúde.
Inventamos máquinas, de todos os tipos, para nos poupar o gasto de energia e depois mais máquinas para queima das calorias acumuladas e fortalecimento dos músculos atrofiados gradativamente... Recebemos ordens para caminharmos, corrermos, nos exercitar em equipamentos que nos aprisionam... Por falar em prisão, a indústria do entretenimento é uma das mais sofisticadas... E lá se vão mais horas em busca do corpo e da mente esteticamente e energeticamente cuidados...
A beleza, em sua maior amplitude, é ignorada... Não há tempo para “o olhar mais profundamente”... Os alvos são a perfeição e a vitória artificializadas ou a redução de danos... Nossos corpos são “troféus” ou “refugos”.
O ato sexual é diretamente associado aos corpos plásticos, vazios e incapazes de atingir o “Nirvana”, a troca de energia capaz de nos fazer bem. As máquinas sugam nossas energias e nos devolve à inercia e à frustração que nos obrigam ao consumo de suplementos. Não contemplamos nossos corpos e as almas perdidas... Os avaliamos de um ponto de vista equiparativos aos padrões.
Há resistências, poucas, mas, conscientes... “Falhas na Matrix”, brechas que nos aproximam da capacidade de sentir. Observo que povos que resistem à lógica imposta sofrem ataques contínuos, tentativas de dizimação e desqualificação de suas culturas... Sejam elas nações atacadas, bombardeadas e invadidas por exércitos “salvadores” liderados pela ONU e seus “heróis” ou comunidades cerceadas e inferiorizadas por preservarem modos de vida que contrariam a lógica da “evolução” ocidental. Há fenômenos que podem ser avaliados socialmente, mas os verdadeiros impactos precisam ser analisados individualmente, visto que a individualização é a estratégia de ataque.
Andar na contramão é constituído como patologias que devem ser curadas ou aniquiladas. “Sentir-se bem” é subversão e os(as) que ousam resistir passam por processos de banalização e desqualificação, devem ser banidos(as), isolados(as) ou encarcerados(as) em prisões sólidas e insólitas... O contato individual ou o roteiro turístico até essas comunidades e seres vivos levam vírus que se difundem por telas, ações governamentais e privadas.
“Sentir-se bem” é o único caminho de resistência na conjuntura em que todas as outras formas falharam.

E você? Como está?
...

Eu?
...

(Marilu Cardoso – 18/05/2018)



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